quarta-feira, 19 de maio de 2010

Último Post (Post Inaugural XCVI )

É quando o dever me chama que vem a mim rastejante e vagarosa essa vontade besta, preguiçosa, necessária de ser poeta. Deitado, eu, o mundo faz de propósito, nem quer que eu levante, providenciou estar ao alcance de minha direita o papel, ao alcance de minha esquerda a caneta; menor trabalho não me daria, a caneta vem sem tampa.

Não tenho apoio. Suspiro resignado um tudo bem carinhoso, gemido, e me deixo levar pelo cochilo que, não sei, veio rastejando também.

Sonho que escrevo.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Mão no bolso, cabeça baixa

Vou chutar a pedra, eu sempre chuto.

Eu tenho nas mãos também, é uma inquietude, não é tremor fino, que tremor fino é outra coisa. Eu mexo em tudo, brinco, balanço, amasso, rasgo. Se alguém nota, fico constrangido, porque acho que acham que é insegurança: me esforço e paro, e também me esforço para que não me seja notado o esforço. É duro, vai pensar. Por isso eu chuto quando dá pra chutar, deixa as mãos livres. E ninguém repara, porque parece um joguete e todo mundo decide fazer igual. Numa hora fica estranho, esfria a brincadeira; dá para brincar sozinho?, dá, mas é coisa toda esquisita, meditativa, meus amigos onde estão?, não é legal, melhor, não é tão legal, mas o certo é que, enquanto funcionar, enquanto estiver quente, e falo de enquanto antes que esfrie, está ali em cima, vê, "esfria a brincadeira", enquanto funcionar, dizia, funciona.

Eu chuto, depois você de onde ela parar; o canteiro da rua acaba o jogo quase sempre e há quem teime pegar com a mão para continuar e a magia vai toda embora*; é um problema danado esse de haver um quem queira mais...

Antes, eu sempre teimava, eu sempre pegava, eu sempre queria. Hoje eu nem ligo mais. Chuto. Chuto só. Chuto no canteiro, chuto o canteiro. Dou cada bicada, vê meu dedão estourado.

* Cada chute imanta a pedra com um não sei o quê e isso não faz sentido, eu sei. Mas é que não se deve mesmo pegar com as mãos.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Diário

Vou manter um diário. Bem, quero. A exemplo de todo o resto, meu passado denuncia, não vai ser das tarefas mais fáceis. Mas é necessário, por mais desacreditado que eu agora esteja. A escrita, enquanto ofício - e, no fundo e na superfície, até já soltei para uns mais chegados e outros não, almejo o estrelato literário (e que mesquinho isso soa, além de ingênuo) -, não é diferente das outras carreiras ou planos ou projetos, falta-me precisão com as palavras agora, mas não é diferente. Exercício (escrevi "Ecervívio", digitando sem olhar), necessita exercício (dessa vez, "exerc´icio"). Planejo o naufrágio do Inaugural, meu blog, que já ostenta no subtítulo o quão imperfeitas já percebo minhas criações, "caderno de exercícios" há lá. Mero exercício. E acho que estou sendo exigente demais. Que a rotina e a disciplina me tragam resultados melhores que espasmos poéticos tão espontâneos quanto incertos; quero encontrar-me nas palavras, de maneira tal a reconhecer-me, sem medo, sem vergonha, e sem arrependimento - pois não planejo o naufrágio do inaugural? E acho que, sim, estou sendo exigente demais. Isso não existe. Digo, é irrealizável. Pode existir enquanto meta, suportarei a frustação de só correr sem atingir? Pelo menos a proposta de diário poupa-me do sofrimento de voltar atrás ou de me contradizer em público - como se fosse público o virtual - e uso da palavra sofrimento como se embaraço já não servisse. Se a vida fosse uma linha esticada e nós representassem os momentos em que se vive e se retorna a um ponto antes já conhecido - um círculo, um grande aro, a cobra que morde o próprio rabo, a chegada ao ponto de partida, substituídos pela ida e vinda de um nó, pois que a vida em linha é tal que 24 horas de uma situação assim não passa de um nós dos mais apertados -, sinto que minha linha seria um emaranhado de nós sobre nós, um novelo por assim dizer, porque, percebo, essa discussão, pular de um blog para um diário, eu já fiz quando pulei do nada para um blog, coisa de abril do ano passado. O que está em pauta é a exposição. Não sei em que nível, em todos eles, talvez. O entrave é mostrar quem sou, descobrir quem sou ou... o entrave é meu? Mesmo assim, creio não adiantar muito eu encontrar um culpado. Que seja. Escrever, pensar, viver, atar e desatar e de novo atar para melhor entender os nós, vale o exercício...

22/07/09


Em uns três momentos no dia lembrei de ter começado um diário, e quis logo desenvolver em palavras os possíveis assuntos. Por que isso? É o segundo dia e tudo ainda é novidade? Daí me pergunto, este é um diário de acontecimentos ou um diário de idéias? E a resposta imediata que me vem é não há por que não atrelar os dois. Viver é isso, fazer e pensar. Ou fazer sem pensar. Ou pensar e não fazer. Mas sempre ação e atuação; que por atuar se entenda fingir, pois que a ação é o fato, a atuação o que se premedita, o pensamento pois. É um mal isso meu de tentar ser absoluto. Às vezes não quero deixar as coisas serem do jeito que elas querem ser. E nem sei bem se isso se aplica ao assunto, mas é como eu quisesse "domar" o diário, como se um diário não fosse simplesmente isso de escrever coisas e sobre as coisas. Tenho sempre que dedicar algumas sinapses, algumas palavras, rascunhar o rascunho, e, pensando bem, isso não é de todo ruim; é uma virtude, talvez. A tudo um pouco atento, uma virtude, é, é.

23/07/2009


Eu conto os dias como quero, é meu o diário. Continuidade à minha maneira, com intervalos; este Dia 3 não é o cheio de acontecimentos dia 24, em que... e não, cheio de acontecimentos foi o dia 23 e de novo agora se dá a pergunta, fatos ou idéias? Porque o que acontece se eu me esquecer desses tão bons acontecimentos, desses dias tão cheios?, gostaria que eles me definissem; gosto que eles me definam, porque, sim, eles me definem. Não que eu esteja a supervalorizar o registro, mas, se estou a registrar, que seja algo de muita valia. Quero lembrar disso, todas essas dúvidas mal remoídas e passageiras e incertas como minhas convicções? (O pior, sim, quero, e quero tudo. E acho lindo tudo isso querer e não poder, e não há nada de errado nisso. Estou muito contente. Estou de novo a admitir que belo é como é, porque é, e não há outra maneira que não a que se deu - porque sim, porque não - e sinto que nada mais que eu escrever fará algum sentido.)


Quando esqueço que escrevo por exercício, percebo que substituída é a pergunta por que escrever por para quem escrevo, e me vejo muito 'eu', com nome, personagem de situações; lugares que de fato existem, meu deus, há outros seres lá!, como dizê-lo? De maneira muito incerta falo por mim: muito me parece errado então falar aqui a voz que não me pertence, como se minha fosse a voz que aqui se faz. Um dia lerei tudo novamente e não sei: não mais saberei ler estes dias escritos, ou ao ler, novamente estarei a escrever? Novamente? (Alguém que não eu conseguiria dar forma, nova voz ao que escrevo? Pelo jeito, a pergunta sempre é "para quem".)

28/07/2009

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Um fiapo bastaria

Vovó fez panos de cama para mim e meu irmão. Bege, quase todinho bege, porque há bolotas coloridas dispersas, poucas. As bolotas coloridas são retalhos de um lençol antigo de que me lembro bem. Era fininho e sedoso de um jeito que só lembrar é como sentir. Passo a mão por elas e o vejo reconstruído à minha frente ou em meu redor.

Em geral, resgata-se da memória, como duma colcha de retalhos, o registro fragmentado que um objeto qualquer nos obriga a revisitar. Vovó presenteou-me com poética: o objeto, este sim colcha de retalhos, remonta em mim inteiriça lembrança.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Para num domingo

Domingo a se desenrolar ou já todo esticado? Ainda enrolado estou eu nos meus lençóis. 'Vai dar tempo?'. Essa pergunta me vem e eu a interpreto como aquela outra, 'Vai dar samba?'. Se o tempo não para, ninguém nunca domou a fera, é certo que vai: tempo sempre há. Meu engano me conforta. Estico-me, enrolo-me, fecho os olhos. Vai dar samba.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Duas vezes o mesmo assunto

Duas perguntas me engasgam. Apertam-me o pescoço, uma de cada lado, em xis: como tesoura que, num outro plano, sou eu mesmo quem manuseia; para ferir ou para ameaçar; já quase me enxergo, e sinto às vezes que sim, que me vejo, de frente, aproximando o polegar ao indicador, os dois enfiados nos círculos errados do cabo da tesoura, porque sou canhoto. É tesoura, mas bem poderiam ser lanças e mais lanças e espadas e adagas de interrogações tantas que me afligem; mas não, é tesoura, pois que são duas somente: das perguntas laminadas, interrogações tantas, escrevi, sobraram-me os furos, os cortes, os arranhões, as marcas e as cicatrizes; destas duas não, sou Prometeu acorrentado, sinto-as sempre; às vezes, só muito de leve é que me tocam, uma de cada lado do pescoço, pouco as sinto, mas arde-me o vinco - pouco sentir não é não sentir, ardor também é dor; às vezes, tão apertado elas me engravatam, que me beliscam o gogó.

As perguntas são "para quê?" e "para quem?". E um mundo inteiro parece se fazer abrir ao mesmo tempo que se encerra em si mesmo. Falar de amor não é amar. As coisas não poderiam estar mais claras agora. Acabei.

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Quando esqueço que escrevo por exercício, percebo que substituída é a pergunta por que escrever por para quem escrevo, e me vejo muito 'eu', com nome, personagem de situações; lugares que de fato existem, meu deus, há outros seres lá!, como dizê-lo? De maneira muito incerta falo por mim: muito me parece errado então falar aqui a voz que não me pertence, como se minha fosse a voz que aqui se faz.

Um dia lerei tudo novamente e não sei: não mais saberei ler estes dias escritos, ou ao ler, novamente estarei a escrever? Novamente? (Alguém que não eu conseguiria dar forma, nova voz ao que escrevo? Pelo jeito, a pergunta sempre é "para quem".)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Texto em que tinha de encaixar o trecho "Profundo é o poço do passado".

Se profundo é o poço do passado, ouvir o tilintar das moedas no fundo quando caem não é bom presságio, madame. De certo não é coisa boa, porque, escute, eu disse tilintar, e me falta a palavrinha outra que soa como as coisas que caem na água. Seco está!, minha cara, o poço, e quase lhe chamo minha filha, pois que só me faltou a certeza. Se reparo bem, não é você a moça que me troca os lençóis e me aplica nas veias? Ou a que me traz o lanche? E o almoço, que a que me traz o jantar sei ser outra. Ou são todas uma só? É isso de vocês se vestirem parecido, acabo por não me afeiçoar, embora hoje não esteja vestindo o branco habitual, veste-se como minha mulher se vestia. Mas e não é que tem mesmo alguns traços?, olha, sua boca, os olhos, exatamente os dois são os mesmos, de uma ponta a outra, e se lhe visse as orelhas, não, já lhas imagino, diria nada, diria nada estar mudado, não fosse esse nariz, que está errado, teria de ser como este, feito o meu, sim, não um invejável atributo, de certo, porque não o é mesmo, e não faça troça, mas de mim algo teria de haver, e você tomou-me o nariz, querida. É, é, o que houve com ele? Não acha desaforado visitar o pai como a dizer pai, já nem pareço mais sua filha, a mostrar-se rebelde? Se há tanto não a visse, atrever-me-ia a não gostar. Mas disse algo e eu em resposta enveredei-me nessa confusão; sim, a frase do poço, sim, pois o meu está a esvaziar-se, eu estou a esvaziar-me, acredite, outra vez confundi aquela outra moça que sempre me cuida, cheia de mimos troca-me as fraldas e as medicinas e me traz comida, confudi-a com a minha velha, porque a danada não usava justo a mesma echarpe?, a mesmíssima com que a presenteei quando fomos a Marselha, nunca que eu esperaria encontrar mais alguém com tão fina peça por essas paragens e, vejo que a moda é mesmo uma coisa, a echarpe de que falo é como esta, dê-me, deixe ver, igualzinha à sua. Mas onde estão todos? Não é hoje o dia, já não é este o horário? Estas minhas condições, eu estou a esvaziar-me, acredite, já bem sei o que direi quando elas chegarem, a tal frase do poço, direi para pouparem as moedas, que já não compensa atirá-las a mim, pedra dura e lisa, moça, ouve-se o tilintar, a memória me é um diabo, escapa-me, sobra-me uma poça ou outra, um enlameado de recordações, mas nada que valha uns francos saltitantes. Mas, olhe, vejo a porta entreaberta, afaste, quero ver, ora, quem vem ali?, meu nariz! Filha! Falávamos aqui de você, querida, e não me olha assim, parte-me o coração, não fiz nada de errado. Dizia aqui para sua mãe, minha memória é um poço raso agora, mas cá estou, forte, disposto a cavar e permanecer vivo. Querida, não me olha assim.